Selo em balcão não impede veneno em bebidas, alerta ex-delegado da PF
Selo de bebidas em SP é 'cosmético' e ignora crime organizado

Em meio à crise de bebidas adulteradas com metanol, uma nova medida anunciada pelo governo de São Paulo está sendo classificada por especialistas como meramente cosmética e ineficaz. Trata-se do selo de conformidade para bebidas alcoólicas, que, segundo críticas, desvia o foco do problema real e não protege o consumidor.

Uma solução que chega tarde e no lugar errado

O selo, anunciado em dezembro de 2025 em parceria com a indústria, tem como objetivo certificar distribuidores e comerciantes. No entanto, para o ex-delegado da Polícia Federal e especialista em segurança pública Jorge Pontes, a iniciativa peca por ignorar completamente o ponto crucial: a fraude ocorre na produção, muito antes do produto chegar ao balcão.

"É como posicionar um segurança armado na saída de um banco depois que o assalto já ocorreu pela porta dos fundos", compara Pontes, que é formado pela FBI National Academy e coautor do livro Crime.Gov. Para ele, a medida "objetiva enrolar a sociedade e deixar de fazer o que deve ser feito".

O cerne do problema está no descontrole da linha de produção. É nas fábricas e locais de envase que acontecem as adulterações com substâncias perigosas como o metanol, os desvios de etanol anidro e a sonegação fiscal. Sem um monitoramento efetivo nessa etapa, qualquer ação no varejo se torna paliativa.

O avanço do crime organizado e a falha do sistema

O vácuo na fiscalização criou um ambiente fértil para o crime organizado. Facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) já foram identificadas atuando neste mercado, que movimenta cerca de R$ 200 bilhões por ano. O modus operandi é claro: infiltrar-se em setores lucrativos com fiscalização frágil para estruturar esquemas de falsificação, sonegação e lavagem de dinheiro.

Este descontrole foi agravado a partir de 2016, com o fim do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe) e a adoção de um modelo autodeclaratório. O resultado é que o poder público perdeu a capacidade de rastrear a produção desde a origem, ficando cego para as fraudes industriais.

"Um mercado desse porte, com fiscalização fragilizada, passa a ser convidativo para o crime", alerta Jorge Pontes, que já foi membro eleito do Comitê Executivo da Interpol. As autoridades policiais baseiam esse diagnóstico em décadas de investigação, não em retórica.

A ilusão de segurança e o caminho para uma solução real

O grande risco do selo cosmético, segundo os críticos, é criar uma perigosa ilusão de segurança. O consumidor pode acreditar que está protegido por um certificado no balcão, enquanto a bebida pode ter sido adulterada na origem. O comerciante, por sua vez, cumpre as regras, checa notas fiscais, mas ainda assim se torna vítima e parte involuntária do problema se o produto já chega contaminado.

A solução defendida por especialistas é clara e direta: rastreabilidade desde a origem. É preciso reconstruir sistemas de controle que monitorem a produção desde o envase, sabendo exatamente o que é colocado no mercado. O Brasil possui tecnologia e quadros técnicos para isso; o que falta, afirmam, é decisão política para enfrentar lobbies e interesses econômicos.

"Crimes estruturais não se resolvem com medidas periféricas", conclui Pontes. "Exigem enfrentamento político, coragem para contrariar lobbies e disposição para reconstruir sistemas de controle que incomodam, mas protegem a saúde pública." Enquanto isso não acontecer, tragédias evitáveis seguirão ocorrendo, e o poder público continuará simulando ação com medidas que enfeitam vitrines, mas não rastreiam veneno.