Um relatório final de Auditoria Operacional do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte (TCE-RN) expôs uma série de problemas graves nas unidades socioeducativas administradas pela Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fundase). O documento, ao qual o g1 e a Inter TV tiveram acesso integral na segunda-feira (15), avaliou o período entre janeiro de 2023 e junho de 2025 e analisou quatro unidades de internação de adolescentes: em Natal, Parnamirim, Mossoró e Caicó.
Falhas Estruturais e Perda da Essência Pedagógica
O relatório do TCE-RN apontou que a medida de internação de adolescentes perdeu sua essência pedagógica, assemelhando-se a um encarceramento comum. Foram identificados longos períodos de ociosidade forçada, com os jovens trancados em alojamentos sem atividades. A oferta de ações esportivas, culturais e de lazer foi classificada como esporádica e insuficiente.
"Os centros socioeducativos apresentam fragilidades importantes, principalmente com relação ao número de atividades estimulantes e formativas do caráter e que vão ajudar o jovem a ser ressocializado", explicou o auditor de controle externo do TCE, Valber Campêlo. Ele destacou que a sociedade é punida duplamente quando o Estado falha em ressocializar, pois o jovem retorna à sociedade mais vulnerável a reincidir em atos infracionais.
Além disso, o documento revelou deficiências críticas na infraestrutura, como infiltrações, falhas elétricas e hidráulicas, acúmulo de mofo, muros baixos e goteiras. Não há contratos ativos de manutenção preventiva, nem planos de combate a incêndio ou equipamentos de segurança adequados, como extintores. Em março de 2024, parte do muro do Case Pitimbu, em Parnamirim, chegou a cair devido às fortes chuvas.
Influência do Crime e Problemas na Gestão
Um dos pontos mais alarmantes do relatório é a constatação de que a dinâmica interna das unidades é influenciada por facções criminosas. A separação dos adolescentes nos alojamentos segue a lógica de pertencimento a esses grupos, numa estratégia para evitar conflitos. Essa prática, no entanto, fortalece a cultura do crime e enfraquece a autoridade pedagógica, reconfigurando a rotina em torno da lógica da segurança e da contenção de riscos.
Em termos de gestão, a auditoria constatou que a Fundase não possui uma metodologia formalizada nem indicadores consolidados para monitorar a eficácia das medidas ou a reincidência infracional. Os dados são coletados, mas não tratados para gerar inteligência de gestão. A fundação também não elaborou formalmente o Programa de Atendimento da internação no Conselho Estadual (Consec/RN), descumprindo a lei do Sinase, e as unidades não possuem Conselhos Gestores instituídos.
Alimentação Precária e Falhas na Educação
Adolescentes e agentes socioeducativos relataram problemas com a alimentação, incluindo o fornecimento de comida estragada ou com pouca variedade nutricional. Também foi citada a baixa qualidade e quantidade insuficiente de itens básicos de higiene pessoal, como sabonete e creme dental, além de colchões velhos, sujos e infestados por ácaros e percevejos.
Na área educacional, há um déficit significativo. Predomina a Educação de Jovens e Adultos (EJA), mesmo para quem não tem perfil, e a carga horária é inferior à exigida por lei, com déficit entre 33% e 43%. Em muitos casos, os jovens estudam sozinhos nos alojamentos. A oferta de cursos profissionalizantes é baixa, com cobertura de apenas 19% em 2024, sendo a maioria de curta duração, online e sem estrutura adequada, como falta de computadores.
Recomendações do TCE e Resposta da Fundase
Diante das falhas, o TCE-RN determinou que a Fundase elabore e inscreva imediatamente o Programa de Atendimento no Consec/RN e que institua os conselhos gestores nas unidades. O tribunal também recomendou:
- Firmar acordos de cooperação técnica com as Secretarias de Educação (SEEC) e do Trabalho (SETHAS).
- Reestruturar a proposta educacional e garantir oferta de cursos profissionalizantes.
- Retomar contratos de manutenção e limpeza e criar plano de prevenção a incêndios.
- Criar uma metodologia de monitoramento com indicadores claros.
O auditor Valber Campêlo alertou que, se as lacunas persistirem sem justificativa, os gestores poderão ser responsabilizados. Em nota, a Fundase informou que recentemente contratou empresas para manutenção em algumas unidades e que novos trabalhadores de limpeza começaram a chegar. A fundação também citou parcerias com a UFRN e o MPT para oferta de atividades profissionalizantes e afirmou estar construindo um projeto piloto para garantir o ensino regular nas unidades.
As falhas são recorrentes. Em julho de 2025, a Justiça do RN já havia proibido que o Case Caicó recebesse novos internos devido a problemas estruturais, sanitários e de segurança considerados graves.