Um relatório divulgado nesta sexta-feira, 19 de dezembro de 2025, pela Classificação Integrada das Fases da Segurança Alimentar (IPC), órgão vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU), trouxe um alerta grave sobre a situação na Faixa de Gaza. O documento aponta que, meses após o início de uma trégua, mais de 100 mil pessoas ainda enfrentam condições de fome catastrófica, o nível mais extremo da escala de insegurança alimentar.
Cenário frágil e risco de retrocesso
O estudo reconhece que o fluxo de ajuda humanitária aumentou após o cessar-fogo entre Israel e o Hamas, iniciado em outubro, permitindo um melhor abastecimento de alimentos na região. No entanto, os especialistas advertem que a crise humanitária de fundo não foi resolvida. O panorama é descrito como "altamente frágil", e qualquer progresso obtido pode ser rapidamente perdido caso as hostilidades sejam retomadas.
O relatório projeta que, se a pausa nos combates se mantiver, o número de pessoas na Fase 5 (catástrofe) pode cair para cerca de 1.900 até abril do próximo ano. Contudo, o alerta é sombrio: no pior cenário, que inclui a retomada da guerra e a interrupção da ajuda, toda a população de Gaza corre risco de fome até meados de 2026.
Destruição e deslocamento em massa
A dimensão da tragédia vai muito além da fome. O conflito deixou um rastro de destruição sem precedentes. Dados citados no relatório indicam que:
- Mais de 90% da população, o equivalente a cerca de 1,9 milhão de pessoas, foi deslocada de suas casas.
- Oito a cada dez edifícios em Gaza foram danificados ou totalmente destruídos.
- Mais de 96% das terras cultiváveis foram arrasadas, eliminando os meios de subsistência locais.
A desnutrição atingiu níveis críticos, especialmente na Cidade de Gaza, e parâmetros graves em outras regiões como Deir al-Balah e Khan Younis. A situação é tão severa que, em agosto, a IPC declarou estado de fome generalizada no território, o primeiro do tipo no Oriente Médio.
Impacto devastador sobre crianças e sistema de saúde
As crianças estão entre as maiores vítimas desta crise humanitária. Estima-se que 40 mil menores tenham perdido um ou ambos os pais, em uma tragédia classificada como "a maior crise de órfãos da história moderna". Dados do Unicef de março apontam que entre 3.000 e 4.000 crianças sofreram amputações de membros, tornando Gaza o lugar com o maior número de menores mutilados no mundo.
O sistema de saúde entrou em colapso. Dos 36 hospitais existentes, 22 foram forçados a fechar as portas. Os 14 que permanecem abertos operam de forma extremamente limitada, enfrentando escassez de equipamentos, medicamentos, combustível e sobrecarga de profissionais.
Contestação israelense e desafios na distribuição de ajuda
O governo de Israel contestou veementemente as conclusões do relatório. O Ministério das Relações Exteriores israelense afirmou que o levantamento foi "deliberadamente distorcido" e não reflete a realidade no terreno. Antes da divulgação, o COGAT, órgão de coordenação de atividades humanitárias do Ministério da Defesa, criticou a metodologia da IPC, acusando-a de ignorar as condições reais e reforçar uma narrativa falsa.
A distribuição de ajuda dentro de Gaza também enfrentou grandes obstáculos. Após a suspensão de um segundo cessar-fogo em fevereiro, o enclave passou por três meses de extrema escassez. A solução encontrada, com apoio dos EUA, foi designar a Fundação Humanitária de Gaza (GHF), uma empresa americana com pouca experiência, como principal distribuidora. Ela reduziu os pontos de entrega de 400 para apenas quatro, sendo amplamente criticada por organizações humanitárias e pela ONU por ineficiência e por transformar a fome em arma de guerra. A GHF encerrou suas operações em novembro.
O acesso aos suprimentos tornou-se perigoso. Quase 1.900 palestinos foram mortos enquanto buscavam ajuda desde o final de maio, segundo o Escritório de Direitos Humanos da ONU.
O relatório da IPC deixa claro que, apesar da trégua, a crise humanitária em Gaza permanece profunda e com potencial de se agravar drasticamente. A comunidade internacional enfrenta o desafio urgente de sustentar e ampliar o fluxo de ajuda e de trabalhar por uma solução duradoura que evite o retorno à catástrofe iminente.