A força literária que emana do Leste Europeu ganha novos contornos no mercado editorial brasileiro com lançamentos recentes de três autores fundamentais. Uma croata, um tcheco e uma russa oferecem, através de suas narrativas, um olhar profundo sobre temas universais como exílio, resistência e a busca por identidade em meio a regimes opressores e guerras.
Um Celeiro Literário de Nobel e Grandes Narrativas
Não é novidade que a região do Leste Europeu se consolida como um verdadeiro celeiro literário de altíssima qualidade. A prova mais recente é a conquista do Prêmio Nobel de Literatura por um autor húngaro, reforçando o peso da produção local. A lista de nomes da região que já foram cotados ou são fortes candidatos ao prêmio é extensa e impressionante.
Os três livros apresentados a seguir, todos lançados recentemente no Brasil, são exemplos dessa potência criativa. Cada um à sua maneira, convida – ou mesmo obriga – o leitor a redescobrir mundos complexos e emocionantes através de uma prosa singular.
Dubravka Ugrešić e o Museu das Memórias Despedaçadas
Em "O Museu da Rendição Incondicional", a aclamada autora croata Dubravka Ugrešić (1949-2023) constrói uma obra difícil de categorizar, mas de uma engenhosidade e sensibilidade marcantes. Publicado pela editora Carambaia, com tradução de Aleksandar Jovanović, o livro de 304 páginas tece uma colcha de retalhos narrativa.
Ugrešić mescla memórias próprias, da sua mãe e de personagens que cruzaram seu caminho, em uma jornada que vai da antiga Iugoslávia aos Estados Unidos. A narrativa oscila entre o trivial e o sublime, criando conexões improváveis, como a reflexão a partir de objetos encontrados no estômago de uma morsa em um zoológico de Berlim.
O título faz referência a um museu real que existiu na Berlim soviética. Através dessa metáfora, a autora compõe seu próprio museu interior, um mosaico que sintetiza a experiência de (sobre)viver sob opressões, quedas de regimes e guerras brutais. É um testemunho literário que, mesmo no exílio perpétuo, consegue enxergar lampejos de beleza e humanidade nas frestas de uma realidade implacável.
Bohumil Hrabal: O Heroísmo no Cotidiano Ocupado
Do cenário tcheco, chega "Trens Rigorosamente Vigiados", de Bohumil Hrabal (1914-1997). Esta é a primeira obra do autor traduzida diretamente do tcheco para o português no Brasil, um marco para os admiradores de sua literatura. A edição da Editora 34, com tradução de Luís Carlos Cabral, tem 128 páginas.
A história se passa na Tchecoslávia ocupada pelas forças nazistas nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial. O cenário é uma estação de trem, onde acompanhamos o cotidiano do jovem aprendiz de controlador de tráfego ferroviário, Milos.
Em sua rotina aparentemente banal, coabitam as angústias da adolescência e da sexualidade, o trabalho mecânico de seguir ordens e direcionar vagões – alguns carregados de deportados – e a constante sombra dos oficiais alemães que controlam a burocracia local. Hrabal demonstra maestria ao transformar o prosaico em épico, mostrando como um rapaz inseguro pode encontrar resquícios de heroísmo em um ambiente de tensão e absurdo. A obra, famosa por sua adaptação cinematográfica nos anos 1960, é um pequeno grande livro sobre resistência silenciosa.
Maria Stepánova e a Fuga de Si Mesma
Completando o trio, a renomada autora russa Maria Stepánova apresenta "Desaparecer", publicado pela Poente/WMF Martins Fontes, com tradução de Irineu Franco Perpetuo (144 páginas). Após escavar suas raízes familiares em "Em Memória da Memória", Stepánova agora conduz o leitor por uma jornada de desencontros.
A narrativa segue M., uma escritora de meia-idade que viaja para um congresso literário em um canto da Europa. Uma série de eventos inesperados, porém, a tira de seu rumo e destino planejado. Ela se vê perdida em estações de trem, quartos de hotel anônimos e ruas desconhecidas, na companhia da solidão ou de estranhos.
O que seria uma viagem formal e pomposa se transforma em uma fuga – de si mesma e das expectativas do mundo. A trama adquire contornos de fábula moderna, incluindo até uma experiência insólita em um circo itinerante. É um romance que questiona e briga com a noção de destino, explorando o que significa se perder para talvez se reencontrar.
Literatura como Ponte Sobre Fronteiras Derrubadas
Juntos, esses três lançamentos formam um painel poderoso da literatura contemporânea do Leste Europeu. Eles vão muito além do regionalismo, tratando de questões humanas fundamentais: a dor do deslocamento, o peso da história sobre o indivíduo, a busca por significado em meio ao caos e a resistência íntima frente a poderes esmagadores.
As obras de Ugrešić, Hrabal e Stepánova chegam ao leitor brasileiro em traduções cuidadosas, permitindo um acesso direto a vozes literárias de primeira grandeza. Elas confirmam que, mesmo em um mundo de fronteiras físicas e políticas, a literatura permanece como um território comum, capaz de conectar experiências distantes através da força universal da narrativa. São livros que, cada um a seu modo, nos convidam a redescobrir não apenas uma Europa complexa, mas também a nós mesmos.