A punição aplicada ao padre Júlio Lancellotti, que incluiu a interrupção das transmissões online de suas missas e a retirada de sua presença das redes sociais, acende um alerta sobre um velho ditado adaptado ao mundo virtual: quem não é visto nos algoritmos, não é lembrado pelo público. Em uma época onde a vida pública é construída em telas, feeds e plataformas, a decisão sobre quem tem o direito de aparecer se tornou um instrumento central de poder.
Do Domingão do Huck ao YouTube: duas lógicas de exposição
O caso do padre Lancellotti inevitavelmente traz à tona a presença midiática de outros religiosos de grande apelo popular, como Padre Marcelo Rossi, Padre Fábio de Melo e, em gerações passadas, o Padre Zezinho. Surge então uma questão crucial: por que alguns sacerdotes circulam com naturalidade em programas de televisão, como o Domingão do Huck, enquanto outros são vetados em plataformas como o YouTube?
A resposta, em grande parte, reside no controle sobre a mensagem. A aparição na televisão aberta oferece à instituição religiosa uma visibilidade emprestada, mediada por roteiros, tempos cronometrados e uma equipe técnica. É uma exposição domesticada, que maximiza o alcance para milhões de espectadores, mas minimiza os riscos, pois segue regras rígidas do veículo.
Já a transmissão de uma missa pela internet opera sob uma lógica distinta. Quem detém o microfone, detém o poder, e neste cenário, o poder não está nas mãos de um apresentador, mas diretamente nas do sacerdote. O problema, portanto, não é falar, mas falar sem mediação institucional, construindo uma audiência própria e um capital simbólico independente dos circuitos tradicionais de autorização eclesiástica.
O conteúdo da fala e o silêncio administrativo
Mais do que o meio, o foco do conflito muitas vezes se volta para o conteúdo da fala. Enquanto o catolicismo do século XXI abriga diversas correntes, posicionamentos progressistas em temas como a inclusão de minorias podem gerar atrito com setores mais conservadores dentro e fora da igreja. A divergência, em si, não é nova. O que mudou radicalmente são os mecanismos para lidar com ela.
O silenciamento contemporâneo raramente assume a forma clássica e explícita da censura. Em vez de uma proibição pública, o que vemos é uma reorganização técnica do espaço digital. Cancelamentos, suspensões de contas, desmonetização de conteúdos e quedas súbitas no alcance orgânico funcionam como sanções eficazes justamente por serem administrativas e aparentemente neutras. Não se proíbe a pessoa de falar; simplesmente se desliga sua caixa de som.
Damnatio Memoriae: o apagamento público na era dos algoritmos
Há um eco histórico perturbador nessa prática. Na Roma Imperial, a damnatio memoriae era a punição reservada àqueles cuja memória se tornava inconveniente ao poder. Nomes eram apagados de inscrições, estátuas eram destruídas. O objetivo era reescrever o passado apagando indivíduos dele.
A infraestrutura da internet permite uma versão atualizada e em escala desse apagamento. Retirar alguém dos fluxos principais de visibilidade é uma forma contemporânea de damnatio memoriae, menos barulhenta e potencialmente mais eficaz. A tecnologia está no centro dessa dinâmica porque não se trata apenas de decisões humanas, mas de sistemas automatizados – algoritmos de recomendação e moderação – que definem quem merece ser visto.
Em uma sociedade onde a existência pública é mediada por plataformas, desaparecer do feed equivale a perder relevância social. Para uma instituição cuja missão é pregar o evangelho "a toda criatura", vetar a presença de um de seus ministros nesse ambiente digital assume um peso paradoxal e grave. A condenação ao esquecimento público, hoje, passa por linhas de código e políticas de uso.