Manual do Estoicismo: Ex-escravo Epicteto e sua filosofia para todos
Epicteto: o escravo que se tornou filósofo estoico

A filosofia estoica, que tem ganhado novos adeptos nos tempos atuais, recebe uma contribuição fundamental com o lançamento da nova edição do 'Manual do Estoicismo', pela Penguin-Companhia. A obra traz à tona os pensamentos de Epicteto (50-135 d.C.), um dos nomes mais emblemáticos dessa escola de pensamento greco-romana, que formou uma trinca clássica ao lado de Sêneca e Marco Aurélio.

Da escravidão à sabedoria: a trajetória de Epicteto

Enquanto seus colegas estoicos nasceram em berços privilegiados – Sêneca era político e Marco Aurélio, imperador –, a história de Epicteto é marcada pela adversidade. Ele nasceu escravo, tornou-se manco devido às agressões sofridas e, ainda assim, conseguiu inscrever seu nome entre os grandes pensadores da humanidade. Seus ensinamentos, originalmente transmitidos oralmente, foram compilados por seus discípulos, garantindo que suas ideias sobrevivessem aos séculos.

O novo volume, publicado em dezembro de 2025, não é apenas uma tradução. É uma edição ricamente guiada pelo professor e tradutor Aldo Dinucci, um dos principais especialistas em estoicismo do Brasil, que também verteu para o português as 'Meditações' de Marco Aurélio. Dinucci assina as introduções e notas explicativas que iluminam a obra, composta por uma seleção de textos do 'Manual', das 'Diatribes' e de fragmentos sobreviventes.

A mensagem central: liberdade e gratidão divina

Em entrevista, Aldo Dinucci destaca que a grande mensagem de Epicteto vai muito além da famosa distinção entre o que está e o que não está sob nosso controle. "Epicteto é um dos mais espirituais dos estoicos", explica o tradutor. Para o filósofo, a capacidade de escolha inerente ao ser humano – que ninguém pode constranger externamente – é um sinal da Providência Divina.

"Essa liberdade nos foi concedida por Deus e que devemos demonstrar gratidão à divindade por isso", afirma Dinucci, parafraseando o próprio Epicteto. O filósofo ex-escravo via nessa liberdade interior um presente a ser celebrado, um contraponto à sua própria condição física e social.

Despojamento e a busca pela verdadeira liberdade

Ao comentar se a obra de Epicteto traz raízes de um pensamento minimalista ou utilitarista, Dinucci é taxativo: seria um anacronismo. O conceito aplicável é o de despojamento. O objetivo não é viver com o mínimo, mas buscar a liberdade, não se prendendo a nada que possa ameaçá-la.

O especialista usa uma metáfora poderosa: assim como um caminhante leva apenas o essencial para não tornar a jornada impossível, o estoico, focado na gratidão a Deus e na conquista de sua liberdade, desconsidera opiniões alheias, luxos ostentatórios e o medo de desagradar. A verdadeira liberdade, para Epicteto, é interna e inalienável.

Epicteto versus Platão: uma visão horizontal do saber

Um dos pontos mais interessantes levantados por Dinucci é a oposição direta entre as 'representações' estoicas e as 'ideias' platônicas. Enquanto Platão, em 'A República', concebia o conhecimento inteligível como acessível apenas a uma elite destinada ao poder, os estoicos tinham uma visão mais democrática.

Para eles, nenhum humano pode ir além da representação, formada pela percepção e pelo pensamento. Ninguém vislumbra a realidade em si, apenas representações dela. Isso leva a uma concepção horizontal da humanidade, onde todos estão em pé de igualdade em relação à sabedoria possível. A única sabedoria humana, para os estoicos, é a socrática: reconhecer nossa limitação perante os deuses.

O desafio de traduzir um clássico

Aldo Dinucci, que já havia traduzido as 'Meditações' de Marco Aurélio, compara os dois trabalhos. Traduzir Epicteto, segundo ele, foi um desafio distinto. "Epicteto é sistemático em seu pensamento. Sua fala é clara e lógica", diz. O 'Manual' é uma síntese feita por seu aluno Flávio Arriano, enquanto as 'Diatribes' capturam o filósofo em sala de aula, em um tom franco e direto.

Já Marco Aurélio, embora profundamente influenciado por Epicteto, escreveu as 'Meditações' como um solilóquio, um diário pessoal e assistemático, redigido em acampamentos militares durante guerras. O exercício de traduzir Epicteto, conclui Dinucci, foi fundamental para depois abordar a obra do imperador.

A nova edição do 'Manual do Estoicismo' se apresenta, portanto, não apenas como um livro de filosofia, mas como um guia acessível para os pensamentos de um homem que, da escravidão e da dor, extraiu uma mensagem perene de liberdade interior, resiliência e gratidão. Uma obra que confirma por que o estoicismo, e Epicteto em particular, continua a falar diretamente às ânsias e exigências dos nossos tempos.