Em 1876, o inglês Henry Wickham partia do porto de Belém do Pará com uma carga preciosa e secreta: 70 mil sementes de seringueira, árvore nativa da Amazônia que seria o início do fim do ciclo econômico que transformou a região.
O Contrabando que Mudou a Economia Amazônica
A bordo do transatlântico SS Amazonas, Wickham declarou às autoridades portuárias que transportava "amostras botânicas extremamente delicadas" destinadas ao Jardim Botânico Real de Kew Gardens, em Londres. Nas suas memórias, ele confessou o temor de que, se descobrissem seu verdadeiro objetivo, seriam detidos.
Liberado para cruzar o Atlântico, o inglês deixava para trás uma cidade em transformação que não imaginava o impacto econômico que essa viagem traria. O objetivo real de Wickham era estabelecer uma indústria de cultivo de seringueiras nas colônias britânicas na Ásia, então exclusivas da Amazônia.
Caroline Cornish, coordenadora de pesquisa do Kew Gardens, explica que a industrialização na Europa e EUA elevou a demanda pela borracha brasileira a patamares extraordinários: "Na década de 1860, o preço da borracha que chega aos portos de Londres é maior do que o da prata".
Do Boom à Decadência: O Fim de uma Era
No Jardim Botânico de Londres, apenas 2,6 mil das sementes germinaram, mas foram suficientes para serem transplantadas para Singapura, Malásia e Sri Lanka, onde se adaptaram com sucesso. As vantagens dos seringais asiáticos eram enormes: enquanto na Amazônia as árvores estavam espalhadas pela floresta e o acesso era difícil, nas colônias britânicas o cultivo era concentrado e organizado.
Na década de 1910, diante da nova concorrência, a economia amazônica ruiu. Nelson Sanjad, especialista no ciclo da borracha do Museu Paraense Emílio Goeldi, destaca: "Essa economia se revela, na verdade, desde muito cedo, uma economia muito frágil, muito dependente de uma única commodity e dos preços do mercado internacional".
A travessia de Wickham marcou o início do fim do chamado "ciclo da borracha", o auge da economia regional entre o fim do século 19 e início do século 20. Cidades como Manaus e Belém, que haviam se transformado em centros de riqueza com arquitetura europeia e sistemas pioneiros de iluminação elétrica, entraram em decadência.
Biopirataria ou Prática Colonial?
Wickham descreveu sua própria ação como uma "farsa" e "contrabando", mas pesquisadores debatem se o termo "biopirataria" é adequado para a época. Sanjad argumenta: "Considerar isso biopirataria ou tráfico seja um anacronismo. Nós temos notícias de naturalistas que entram na Amazônia e levam milhares de plantas, animais e artefatos indígenas. Essa é uma prática comum no século 19".
Pelo serviço prestado à coroa britânica, Wickham recebeu o título de cavalheiro da Ordem do Império Britânico em 1920, tornando-se "Sir". Caroline Cornish reconhece que "o colonialismo foi um processo extrativista, que foi um dos muitos atores envolvidos nesse movimento e em todas as consequências ambientais, humanas e econômicas".
O Legado Urbano e as Desigualdades
Durante o auge da borracha, Belém passou por transformações urbanas profundas. Sob a intendência de Antonio Lemos (equivalente a prefeito), a cidade ganhou:
- Theatro da Paz, inspirado no Teatro alla Scala de Milão
- Sistema de iluminação elétrica pioneiro
- Rede de esgoto e transporte ferroviário
- Avenidas arborizadas inspiradas nos boulevards parisienses
Entre 1890 e 1920, a população de Belém saltou de 50 mil para 236 mil habitantes, crescimento de 370%. Porém, enquanto a elite enriquecia, milhares de migrantes nordestinos acabavam nas periferias. Celma Vidal, da UFPA, explica: "A desigualdade existia em várias cidades brasileiras, mas talvez em Belém isso apareça de uma forma mais clara, em função de uma riqueza muito intensa dessa elite da borracha".
Hoje, Belém é a capital com mais pessoas vivendo em favelas no Brasil: cerca de 57%, seguida por Manaus com 56%.
COP30: Um Novo Ciclo para Belém
Com a realização da COP30, Belém vive um momento de transformação urbana inédito nas últimas décadas. Investimentos bilionários abriram novas avenidas, reformaram prédios públicos e criaram espaços de lazer. O prefeito Igor Normando chegou a comparar o momento a um novo "ciclo da borracha".
Porém, comunidades periféricas temem ficar de fora dessas transformações. Charles Augusto Evangelista, líder comunitário do bairro Barreiro, comenta: "Quando surgiu essa COP 30, nós ficamos muito apreensivos de transformar a vida da periferia. Essas obras não impactam diretamente o dia a dia das pessoas da periferia".
Enquanto canais em áreas nobres como a Nova Doca receberam urbanização completa, o canal de São Joaquim, no Barreiro, terá apenas 720 metros revitalizados para a COP30.
A história do ciclo da borracha deixa lições importantes para o presente: a necessidade de diversificação econômica, o combate às desigualdades e a valorização da biodiversidade sem repetir os erros do passado extrativista. Agora, os olhos do mundo se voltam para Belém não para extrair, mas para preservar.