O governo chinês decidiu dar uma freada de emergência em seus ambiciosos planos para a produção em massa de veículos autônomos. A mudança radical de postura ocorreu após um acidente fatal envolvendo um carro com sistema de direção assistida, que expôs falhas tecnológicas e gerou uma forte pressão da opinião pública. A decisão representa um recuo significativo em relação às metas estabelecidas há cinco anos.
Licenças restritas e um plano que mudou de rumo
Na semana passada, o Ministério da Indústria e Tecnologia da Informação da China tomou uma medida que surpreendeu o setor. Das nove propostas apresentadas por fabricantes que buscavam autorização para vender veículos com funções avançadas de condução automática, apenas duas receberam o aval do governo. A autorização, no entanto, está longe de ser uma luz verde para a produção comercial.
As licenças concedidas ao Beijing Automotive Group (BAIC) e à Changan Automobile permitem apenas a realização de testes restritos. As empresas poderão operar táxis autônomos apenas em trechos específicos de rodovias nas cidades onde têm sede, com severas limitações. Uma das regras proíbe, por exemplo, a troca de faixa sob controle do computador. Fora dessas áreas delimitadas, os veículos devem ser conduzidos obrigatoriamente por motoristas humanos.
Essa decisão marca um ponto de inflexão em relação ao cronograma traçado por Pequim por volta de 2020, que previa a chegada de carros altamente autônomos ao mercado consumidor até o final de 2025.
O acidente que virou o jogo: três mortes e um debate público
O episódio que desencadeou a revisão das políticas ocorreu no final de março, na província de Anhui. Um sedã elétrico Xiaomi SU7, operando no modo de direção assistida, colidiu com uma barreira de concreto em uma rodovia. O acidente resultou na morte de três estudantes universitárias.
Diferentemente de incidentes anteriores, este caso escapou à censura inicial e ganhou ampla repercussão nas redes sociais chinesas, gerando um intenso debate público sobre responsabilidades legais e a confiabilidade da tecnologia. A Xiaomi informou que seu sistema detectou o fechamento da faixa devido a obras e emitiu um alerta ao motorista, que assumiu o controle momentos antes da colisão. Ainda assim, o evento evidenciou as limitações dos sistemas atuais e levantou dúvidas sobre a prontidão da tecnologia para assumir a direção.
Diante da reação popular, o Ministério da Segurança Pública passou a intervir de forma mais direta, reforçando alertas sobre o uso inadequado da direção assistida e deixando claro que os sistemas vendidos atualmente não equivalem à condução totalmente autônoma.
Níveis de autonomia sob escrutínio e o alinhamento global
A regulação chinesa classifica a automação em níveis. O Nível 2, amplamente disponível, oferece assistência, mas exige atenção constante do condutor. O Nível 3 permite que o sistema assuma tarefas mais complexas, com o motorista pronto para intervir. Já o Nível 4 envolve táxis-robô sem motorista, atualmente em fase de testes em cidades como Wuhan.
Relatórios da televisão estatal chinesa mostraram que sistemas de Nível 2 de fabricantes locais têm desempenho irregular em cenários complexos, como obras noturnas em rodovias. Em avaliações comparativas, apenas modelos da Tesla demonstraram maior consistência na prevenção de colisões.
Antes do anúncio do governo, montadoras chinesas como Geely, XPeng e Li Auto haviam acelerado investimentos, apostando na liberação iminente do Nível 3. Chegaram a produzir veículos com sensores e câmeras avançadas, mas agora são obrigadas a limitar o software a funções básicas, aguardando novas regras.
Analistas do setor avaliam que a China optou por uma pausa regulatória estratégica para reorganizar normas de responsabilidade civil, seguros e certificação. A avaliação é que o avanço recente foi impulsionado mais por competição industrial e marketing do que pela maturidade tecnológica.
Com essa decisão, o país que lidera a produção global de veículos elétricos sinaliza que, no caminho para a autonomia total, o ritmo será ditado menos pela ambição industrial e mais pela segurança e pela confiança do público, alinhando-se a uma postura mais cautelosa já adotada em mercados como Estados Unidos e Europa.