O governo federal deu um passo significativo para preservar a memória de um dos períodos mais sombrios da história do Brasil. O antigo prédio que abrigou o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) no Rio de Janeiro foi oficialmente tombado como patrimônio cultural. A medida busca eternizar o local que serviu como centro de tortura e morte durante a ditadura militar.
Um marco da repressão agora é patrimônio
A formalização do tombamento aconteceu na última terça-feira, 30 de dezembro de 2025, com a publicação no Diário Oficial da União. O ato foi assinado pela ministra da Cultura, Margareth Menezes. O edifício, localizado na Rua da Relação, número 40, no centro do Rio, era conhecido como a antiga Repartição Central de Polícia.
Durante o regime militar, instaurado em 1964, o local se transformou em um símbolo de horror. No chamado "porão do Dops", agentes do Exército detinham e interrogavam brutalmente suspeitos de se opor ao governo ou de ter ligações com grupos comunistas, principalmente nas décadas de 1960 e 1970. Muitos dos que entraram naquelas celas nunca mais voltaram a ver suas famílias, sendo mortos ou exilados pelo regime.
O processo para transformar o local em patrimônio não foi rápido. Ele estava sob análise do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) há pelo menos uma década. A decisão final, no entanto, só foi tomada em 26 de novembro, em uma reunião histórica.
Memória viva presente na decisão
A sessão que aprovou o tombamento contou com a presença emocionante de familiares de vítimas da repressão. Estiveram presentes parentes dos ex-deputados Carlos Marighella e Rubens Paiva, ambos mortos em operações ligadas ao Dops entre 1969 e 1970. Professores que foram presos políticos durante a ditadura também participaram do momento, dando um testemunho vivo da importância de não esquecer.
O tombamento vai além da preservação de uma fachada. Ele é um ato de reconhecimento oficial do Estado sobre as violações de direitos humanos que ali ocorreram. Impede que o prédio seja demolido ou descaracterizado, garantindo que ele sirva como um local de memória para as futuras gerações.
O cinema reacende o debate histórico
O momento do tombamento não é casual. Ele ocorre na esteira do grande sucesso e impacto do filme "Ainda Estou Aqui" (2024), dirigido por Walter Salles. O longa-metragem, que narra a história da morte do deputado Rubens Paiva, trouxe as atrocidades da ditadura brasileira de volta ao centro das discussões públicas.
O filme foi um fenômeno crítico e de público, vencendo o Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025. A atriz Fernanda Torres também foi premiada com um Globo de Ouro por sua interpretação de Eunice Paiva, viúva de Rubens. No Brasil, a obra dividiu opiniões, sendo celebrada por setores da esquerda e criticada por grupos da direita, reacendendo polêmicas sobre a interpretação do período histórico.
O impacto do filme foi tão profundo que reverberou até nas instituições. Já no final de 2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou a revisão de todas as certidões de óbito de vítimas da ditadura. A ordem é para que inclua "violência pelo Estado" como a causa oficial da morte, um passo crucial para o resgate da verdade histórica.
Um patrimônio do povo, um alerta para o futuro
O tombamento do antigo Dops representa mais do que uma medida burocrática. É a consolidação de um local de dor em um espaço de educação e reflexão. Transformar um símbolo de repressão em patrimônio cultural é uma forma poderosa de afirmar que a memória deve ser preservada para que os erros não se repitam.
A decisão do Iphan, impulsionada pelo debate cultural reavivado pelo cinema, mostra como arte e política podem se entrelaçar para promover justiça histórica. O prédio na Rua da Relação, número 40, deixa de ser apenas uma antiga sede de tortura para se tornar um monumento à resistência e um lembrete permanente do valor da democracia e dos direitos humanos.