Um levantamento inédito revela a dimensão da letalidade policial no Rio de Janeiro ao longo das últimas três décadas. As ações da polícia fluminense foram responsáveis por 25.283 mortes entre janeiro de 1998 e setembro de 2025, representando 15% do total de 170.338 mortes violentas intencionais registradas no estado neste período.
Comparação internacional assustadora
Os números da violência policial no Rio surpreendem até em comparação com países conhecidos por problemas similares. Nos últimos dez anos, entre 2015 e 2024, a polícia do Rio matou 11.550 pessoas, uma média de 1.155 por ano. Este número supera todas as mortes causadas pela polícia dos Estados Unidos no mesmo período, que totalizaram 10.424, segundo o Washington Post.
A economista Joana Monteiro, professora da FGV e pesquisadora de segurança pública, comenta a gravidade dos números: "Os Estados Unidos são um país muito grande. Então mesmo em comparação com esse país, que já teve muitos escândalos de violência policial, o nosso número está maior. A gente no Brasil aprendeu a naturalizar esse número, mas sempre que eu falo isso para um estrangeiro que trabalha com segurança, todo mundo fica chocado".
Operações mais letais e intervenção do STF
O ano de 2019 marcou o recorde histórico de letalidade policial no Rio, com 1.814 mortes registradas, colocando a corporação como a mais violenta do país em números absolutos. Naquele ano, o estado registrou 10 mortes para cada 100 mil habitantes, ficando atrás apenas do Amapá, onde a taxa foi de 14 por 100 mil habitantes.
Esta escalada de violência motivou, no mesmo ano, a instauração no STF da ADPF das Favelas. Desde 2020, o Supremo Tribunal Federal implementou mudanças na estrutura das forças de segurança e em normas para uso da força policial em comunidades do Rio. Nos anos seguintes, observou-se uma queda no número total de mortes pela polícia no estado, tendência que especialistas atribuem, em parte, a estas medidas.
Governo atual e as megaoperações
A gestão do governador Cláudio Castro (PL) foi responsável por três das quatro operações mais letais na região metropolitana do Rio desde janeiro de 2007. Além da recente operação de 28 de outubro de 2025 nos complexos da Penha e do Alemão - que resultou em 121 mortos, incluindo quatro policiais - Castro estava à frente do governo durante os massacres de Jacarezinho (2021) e Vila Cruzeiro (2022), que deixaram 28 e 23 vítimas, respectivamente.
Enquanto entidades de direitos humanos classificam a última operação como um massacre, o governo estadual nega execuções e defende a ação como fundamental para enfraquecer o Comando Vermelho em sua principal região de atuação.
Falta de transparência e ciclo de violência
Um dado preocupante revelado pela investigação mostra que apenas 57 dos 128 agentes da Core usavam câmeras corporais durante a megaoperação de outubro, que envolveu mais de 2.500 policiais. A operação está sob investigação do STF.
A defensora pública Cristiane Xavier expressa preocupação com o ciclo de violência que se intensifica após a morte de policiais: "Com os quatro policiais que morreram e mais o que acabou perdendo a perna, o que vem de volta? Porque a gente sabe, sempre quando tem um policial morto, a vingança é ainda maior, é exponencial".
Especialistas apontam necessidade de mudança
Para quem atua nas favelas da região metropolitana, foco principal da letalidade policial, a sensação é de esgotamento de um modelo que não funciona. A defensora pública critica a repetição de estratégias: "Se você não cria alternativas nas comunidades, se não reurbaniza, é evidente que esse projeto de segurança, há 30 anos com o mesmo modus operandi, não surte efeito. Se não mudo os ingredientes, o bolo vai ser sempre o mesmo".
O delegado da Polícia Civil aposentado Vinicius George compartilha da mesma percepção: "Em 30 anos, a gente matou pelo menos 30 mil e morreram pelo menos 3.000 dos nossos. E nada melhorou nesse período. Pelo contrário. Se matar e morrer desse resultado, já teria dado resultado. E não deu. É uma espiral de violência, uma corrida armamentista. Vamos insistir nisso?".
O especialista defende uma mudança de rumo: "Para melhorar, a primeira coisa é não insistir no que deu errado. E sobre o que fazer, é tentativa e erro. Funcionou, a gente continua. Não funcionou muito bem, a gente aperfeiçoa. Deu errado, a gente muda o rumo".