Um ano após um mutirão comunitário abrir o Canal do Livramento, na foz do Rio Amazonas, as populações do arquipélago do Bailique, em Macapá, no Amapá, voltaram a ficar completamente isoladas. A seca severa e o rápido assoreamento do canal impedem o deslocamento por barcos, meio de transporte vital para acesso à escola, pesca, trabalho e abastecimento.
Isolamento e perdas na rotina ribeirinha
O problema, que se repete e se intensifica no período de estiagem, tornou a navegação praticamente impossível. O nível da maré não sobe o suficiente e, com o canal estreito, as embarcações não conseguem passar. Vídeos feitos pelos próprios moradores mostram áreas que antes eram cobertas pelo rio e agora se transformaram em lamaçais e vegetação. Em uma das gravações, é possível ver um residente caminhando com uma mala pela lama até alcançar um ponto navegável.
Atualmente, apenas barcos muito pequenos, como as "rabetas", conseguem se aproximar, e apenas durante o breve período da maré alta. Na maré baixa, nada passa. As comunidades diretamente afetadas incluem Ponta da Esperança, Capinal, Arraio, Livramento, Ilha das Marrequinhas, Equador, Campos do Jordão, Maranata, Igaçaba, Ponta do Bailique, Igarapé do Meio, Franquinho, Macedônia, Progresso e Freguesia.
Zeth Serges, moradora da comunidade do Livramento, a área mais crítica onde a seca já se estende por seis quilômetros, participou do mutirão de abertura do canal em outubro do ano passado. Ela relata cenas dramáticas de abastecimento interrompido. "Já vi famílias com caixas de peixe que não conseguiam passar. Às vezes, precisam deixar tudo na praia. O mesmo acontece com barcos cheios de melancia ou banana, que ficam presos e não chegam a Macapá", contou.
Resposta do poder público e ações emergenciais
O secretário de Transportes do Amapá, Marcos Jucá, informou que o governo atua no local desde o ano passado. Ele afirmou que o fenômeno de assoreamento em tal escala nunca havia sido registrado no Bailique, o que demandou um estudo técnico prévio. A dragagem propriamente dita começou em junho de 2025, com um investimento de R$ 9 milhões do Governo Federal.
O assoreamento atinge uma extensão de 11 quilômetros. Até o momento, cinco quilômetros já foram dragados, no trecho entre Arraio e Livramento. As equipes agora avançam em direção ao Igarapé Grande, com um quilômetro concluído nessa nova frente. "Podemos terminar em três meses, mas não sabemos como o material vai se mover no próximo inverno. Hoje só barcos pequenos passam na maré alta. Na baixa, nada passa. Usamos uma escavadeira anfíbia e uma draga para abrir o canal", explicou Jucá.
Enquanto a solução definitiva não vem, ações humanitárias tentam amenizar o sofrimento das famílias. Na terça-feira, 16 de março, uma embarcação conseguiu levar 100 mil litros de água potável e 2.250 cestas básicas para o arquipélago.
Alerta científico e a fragilidade frente às mudanças climáticas
O Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (Iepa) monitora a região do Bailique há mais de 40 anos com o auxílio de imagens de satélite. O pesquisador Orleno Marques faz um alerta: a dragagem precisa ser acompanhada de um estudo de balanço sedimentar para entender como o material retirado será redistribuído pelo ambiente, evitando que ele simplesmente retorne e assoreie o canal novamente.
"É preciso monitorar junto com a dragagem e fazer a modelagem do sedimento. O material retirado de um ponto acaba sendo depositado em outro. Sem esse controle, o problema retorna", afirmou Marques. Ele também levanta a necessidade de se pensar no futuro das comunidades mais vulneráveis. "Quando o canal assoreia, os moradores deixam de ser ribeirinhos e perdem acesso ao rio, o que afeta sua identidade. Em alguns casos, pode ser preciso deslocar comunidades."
Os estudos do Iepa classificam o Bailique como uma região frágil diante das mudanças climáticas, justamente por estar em uma área costeira. "O ambiente costeiro é um dos mais vulneráveis. Alterações no regime de chuvas e no nível do mar intensificam os fenômenos na região", explicou o pesquisador, conectando o isolamento atual a um contexto ambiental global mais amplo.